O ambiente era de festa na Nazaré. Os melhores surfistas do mundo de ondas grandes estavam ali para nos ensinar que por vezes um picnic em terra pode ser tão produtivo para a aprendizagem como uma remada desafiante na água. Estávamos ali para ver! Havia iguarias e bebidas de várias partes do país e para todos os gostos, sem esquecer até os vegetarianos. As mantas e as cadeiras tornavam o ambiente ainda mais confortável. Estar entre amigos é por si só o sabor do conforto. Sabíamos disso.
Kai Lenny fazia a delícia das meninas do grupo, mas a claque estava organizada para apoiar os lusos. A democracia reinava e dava liberdade para momentos de admiração por todos os surfistas que acabavam de sair de uma luta desigual com a natureza.
No grupo havia um elemento mais calmo que observava o mar deitado sobre a vegetação. Reconheci-o de imediato. Era o puto de 17 anos a quem tínhamos dado boleia para uma onda no Alentejo. Sabia que fazia uns treinos de apneia como um guerreiro romano e que queria testar o seu pulmão em mares maiores e sair da sua zona de conforto. Olhei-o com admiração e apreciei o seu olhar atento ao campo de gladiadores. Lembrei-me do dia em que surfámos juntos. Avançou para o mar em silêncio, acompanhado de uma prancha emprestada com mais de 10kg e bem acima das medidas a que estava habituado. O mar não exibia toda a sua força mas os sets metiam respeito e lembravam-nos da nossa pequenez perante o azul em movimento. Temi que as coisas não corressem bem para o puto.
Desces uma ou outra onda e embicas nas restantes, pensei.
Era esperado que tal acontecesse. As ferramentas materiais e imateriais com que jogava eram diferentes das nossas. Uma prancha grande na qual os seus pés nunca tinham tocado e não sabiam onde se posicionar, uma onda desafiante com uma remada desgastante para chegar até ela, nervos para gerir e alguns olhares repletos de expectativas por ser o miúdo mais novo do grupo. Tinha tudo para dar errado. Mas deu tudo certo. Remou com maturidade e sem medo, dropou com firmeza e desenhou linhas até ao canal. E repetiu! Uma, duas, várias vezes. Fê-lo com naturalidade, com humildade e, sobretudo, com honestidade. Não se colocou em situações demasiado arriscadas mas também não se intimidou nos momentos decisivos. Em linguagem de surfista, não puxou o bico, não amarelou, não vacilou. Agarrou algumas bombas e saiu sem grandes festividades.
Na falésia da Nazaré perguntei-lhe se já tinha a sua Gun encomendada para voltar a surfar aquelas ondas. Disse-me que não. Tinha que trabalhar para a ter. O plano era dar umas aulas de surf no próximo verão para poder avançar com a compra.
Ali, naquele momento, desejei que o verão chegasse e passasse rápido. Se pudesse avançar o tempo, já seria Outono, as aulas de surf já teriam sido dadas, os trocos amealhados e nascia uma nova prancha de ondas grandes. Porque a vontade, essa impulsionadora de acções, já está bem viva dentro da cabeça do puto. Sim, desse puto que se chama Martim!
João “Flecha” Meneses
Para ler mais textos de João “Flecha” Menses vista o seu blog “Caderneta de Mar”.
Sobre o Autor:
João “Flecha” Meneses | Com quase três décadas de surf nos pés, “Flecha” enquadra dois adjectivos de respeito no surf, “underground” e “Soul” surfer. Originalmente local das ondas da Caparica, João tornou-se residente da Ericeira há mais de uma década e é um daqueles surfistas que não aceita insultos do “Sr. Medo”. Nos seus tempos livres é escritor de mão cheia e esta é mais uma grande colaboração com a ONFIRE.
Comentários
7 comentários a ““O Puto” | By João “Flecha” Meneses”
Quando for grande quero ser como este meu irmão mais novo. Um orgulho maior que as ondas onde um dia vai surfar
Grande Martim.
Maior que as ondas.
Inveja de já não ter idade para acompanhar.
Conta com apoio na Praia Grande.
Parabens do tio Paulo.
Parabéns pela força e inteligência do Martim! Gostei da fotografia e deste texto também. Bom “retrato”!
Muito inspirador Martim, parabéns 🙂 uma fã, Cecília Frazão
Grande orgulho! Bjs Martim
pai
Que inspiração!
Realmente a determinação do Martim, é incrível!