Sempre tive curiosidade em saber quem foi a pessoa que se lembrou de chamar duckdive (bico de pato) à técnica de passar debaixo de uma onda com a prancha. Com toda a certeza foi uma expressão baseada em horas de observação e conhecimento desta espécie de ave aquática. Que ideia genial! Se há um animal que domina o mergulho nas ondas de uma forma sábia, é mesmo o pato que por ali anda, tantas vezes, junto à zona de rebentação. Sempre que vejo um, procuro não o perder de vista e tenho uma lição gratuita de como nos devemos comportar em situações menos confortáveis no mar. Observo a calma perante os quebra-cocos, o deslizar entre correntes, o mergulho perfeito e no timing certo. Já muitas vezes temi pela sua vida,

“este não se vai safar com as ondas que aí vêm.”

E é vê-lo a desaparecer e a surgir uns bons metros à frente, para mergulhar de seguida antes da explosão da onda mesmo em cima das rochas. É tudo tão suave, tão natural, ele segue o rio de água salgada, não o contraria. Eles são um só.

Ontem tive um encontro com essa espécie. Olhos nos olhos. Deu para sentir a sua alma. Eu conto-vos como foi, preciso desse desabafo.

Depois de uma grande caminhada pela falésia, quis dar um mergulho numa pequena enseada portuguesa, longe das multidões e que ganha aos pontos a algumas praias de postais do Caribe. Ele olhava para mim e para mais um grupo de pessoas que tentavam uma aproximação. Vi o medo no seu olhar. Medo de mim, medo deles, medo da situação de vulnerabilidade. Ali estava um Ser, parado, em cima de uma rocha, quem sabe a ganhar alguma energia e a pedir vida ao universo. Talvez em pânico ou, simplesmente, à espera da sua hora…

Tinha a asa direita totalmente presa por um anzol e uma pequena boia das redes de pesca. Percebi que dificilmente alguém daquele grupo de pessoas chegaria aquela rocha de arestas pontiagudas e de bivalves com unhas afiadas, que agora se transformava em ilha com a maré a encher. Trepei-a com a ajuda de todos anos de experiência por terrenos costeiros que só um marisqueiro ou um surfista pode ter. Sem vaidade perante o grupo de leigos e apenas com a missão de salvar o Mestre do Mergulho. Eu aproximava-me e ele afastava-se. Pedi uma camisola a uma senhora estrangeira que escalava com dificuldade mas com a coragem de quem queria salvar uma vida. Dei mais um passo e olhei os seus pés, de pato pois então, que máquinas de nadar, que pés de bodyboarder selvagem. Percebi nesse momento que ia lançar-se ao mar, a sua zona de conforto. Após uma descida em que os meus pés se rasgaram como manteiga amolecida perante uma faca de barrar, segui-o em natação suave por cerca de 100 metros. Chegámos à outra ponta da enseada, olhámo-nos uma vez mais, desta vez mais longe, não houve permissão para aproximações e, quase que o ouvi dizer,

Posso morrer aqui na minha casa, mas a mim não me apanhas.

Voltei a nado para o pequeno areal com algas, procurando encontrar optimismo na situação. É um pato de mar, não é uma gaivota, nada e mergulha como ninguém mesmo estando em sofrimento, pode caçar e quem sabe soltar-se daquele maldito anzol.

Enquanto limpava os meus pés com a toalha amarela, agora salpicada com sangue da caminhada inesperada, a senhora da camisola passou por mim e perguntou:

Are you a local?
Timidamente, respondi que sim.
Que resposta estúpida, pensei. Se havia alguém local, era ele.

Sobre o Autor:
João “Flecha” Meneses | Com três décadas de surf nos pés, “Flecha” enquadra dois adjectivos de respeito no surf, “underground” e “Soul surfer”. Originalmente local das ondas da Caparica, João tornou-se residente da Ericeira há duas décadas e é um daqueles surfistas que não aceita insultos do “Sr. Medo”. Nos seus tempos livres é escritor de mão cheia e esta foi mais uma grande colaboração com a ONFIRE.

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