“Quem faz surf descobre o ouro. Não precisas de ser bom, ganhas uma alegria que só depende ti.”

É impossível falar da Praia de Carcavelos sem falar na mítica onda do Calhau. E para falarmos dessa onda temos de falar de tubos. E para falarmos de tubos temos de falar do Rui Cruz, o Ratos. Arriscaria dizer que nas próximas linhas vão ficar a conhecer melhor o surfista que mais minutos passou naqueles salões mágicos. Uma lenda viva do surf português, com 54 anos de idade e mais de 40 dentro de água.

De onde vem a alcunha Ratos?
Aconteceu por causa de uma música do Sérgio Godinho: “Tem ratos, tem ratos nos  sapatos… “ ao qual o grandíssimo surfista do Calhau já falecido, Lítri, começa a cantar “Tem ratos, tem ratos nos sapatos do Rui Vasco” e começa assim…

Tempo de surf?
A minha primeira prancha foi em 1979 e desde aí foi dentro de água todo o dia até 2000/2005. Vivi só para o mar, de manhã à noite. O mais importante era ser um acérrimo defensor dos valores do Calhau: uma grande exclusividade, um espaço que era teu e um culto real desta atitude que nós tão bem conhecemos. Lembro-me de ir para a praia com 12,13 anos fazer surf, com 10, 20 amigos que se iam juntando só no caminho para a praia e em que no início havia uma ou duas pranchas para todos.

Ondas preferidas?
Esquerda Calhau /Outside Santo Amaro e todas as outras.

 

 

Melhor memória de um tubo?
1983.Melhor dia de surf da minha vida. final de dia em Carcavelos, 2,5/3 metros  offshore /glass, maré vazia, grande, perfeito, single-fin Gordon & Smith branca, linda com um pin-line azul. Dentro de água estava o Kiko Rocha, o maior surfista de ondas grandes de Carcavelos. Aquele dia fica gravado na minha vida como um dia único. Na minha primeira onda… Calhau, mesmo Calhau, já mais perto do Moinho, drop, bottom e deslizar com os braços para trás até entrar num “túnel” durante metros e metros até decidir mergulhar…onda atrás de onda. Nunca na vida senti algo assim. Quando saí perguntei-me sem parar, o que é que me aconteceu?
Algo se passou. Foi provavelmente o dia mais especial no que ao surf diz respeito e o surf tem muitos dias. Estava enorme e eu lidava com a força do mar com uma naturalidade que procurei e continuo a procurar passados estes anos todos. Como aquele dia nunca mais vivi, mas acredito que tamanha revelação pode sempre acontecer, mas é difícil.

Cheguei a ver-te a no Calhau a entubar, tinhas um estilo em total sintonia com a onda. Até hoje elogiam a tua habilidade para os tubos. Queres falar de alguns surfistas que te inspiravam ao nível internacional?
O estilo do Mark Richards, os tubos do Shaun Tomson e do Gerry Lopez, Qual é a diferença entre um grande tubo dessa altura e agora? É apenas nas pranchas, que se comportam de forma diferente.
O tubo é um espaço no tempo, tu paras no tempo. Eu comecei-me a aperceber que dentro do tubo não levava porrada nenhuma. Eu na prática cultivei o oposto do Dapin. Passei anos a cair e a adorar. A treinar a técnica de cair. O meu culto era o da linha, cortar e ficar dentro do tubo. Eu entrava no Calhau e quanto mais close out mais eu gostava.

Que pranchas usavas?
Surfei muitos anos de single fin. Também me lembro de dias incríveis de twin fin. Os primeiros 6 anos andei com pranchas portuguesas feitas pelo João Lopes, as I&L (Inocentes e Lopes), depois mais tarde as Semente e as Star Model, entre outras, como as Gordon & Smith e as Town & Country.

É verdade que o Rodrigo Herédia aprendeu a entubar com a tua influência?
Penso que ele disse isso numa revista. Já muitos anos tinham passado e apareceu a geração do Rodrigo. Com dedicação transformou-se num super surfista com power e mentalidade forte. O Rodrigo é um bom homem, cresceu no estatuto mas é um gajo fixe!

E memórias de momentos com grandes surfistas estrangeiros que apareceram em Carcavelos?
O primeiro campeonato em Carcavelos que terminou na Praia da Torre com a vitória do Nigel Semmens, na altura campeão inglês. Ainda tive a prancha dele, amarela single-fin. A vinda do Team Safari, com manobras de outro mundo e bicos de pato? Bicos de pato que ninguém fazia…
A chegada do Rory Russell à praia com outro excelente goofy – Peter McCabe. O Rory era tubo atrás de tubo. Também me lembro de um brasileiro filho de um Cônsul, Eraldo Gueiros e o seu surf super evoluído. O grandíssimo Picuruta Salazar e o irmão Almir que foi campeão em 1991 e causou alguma polémica junto dos surfistas portugueses.

 

 

Descreve-me a mítica onda do Calhau…
A Nazaré tem a “Big Mama”. Essa onda no Calhau é em frente do Bar dos Gémeos, com swell de noroeste, linda na formação e tubular com secções atrás de secções até em frente ao Narciso. A Maior onda da praia de Carcavelos enviada pelo Cachopo Sul (baixio existente em frente á praia do Moinho a cerca de 2 Km para Sul), directamente para a praia do Moinho que pela profundidade na entrada da foz do rio, faz com que as maiores esquerdas comecem aí e depois com vários picos, Calhau, Narciso, Windsurf Café, e por último o Veleiro, façam parte da mesma onda.

Quem eram os surfistas que dominavam o pico?
A fotografia da memória é situada num dia de 1980: primeira e segunda gerações na água, o domínio é uma palavra forte. Os maiores e nomes mais fortes e que dominavam pelo arrojo e coragem e depois pela perícia, são os Rocha com o Kiko Rocha à cabeça, o Topê e o João Rocha, O Paulo Inocentes, os irmãos Portas, o Chori, o Tó Banheiro, o Peixe (embaixador do surf que recebia centenas de australianos e ingleses que aportaram por estas bandas) o Asterix, o Paulinho do Baleal e, num surf de evolução o genial Luís Narciso. Volto a frisar, domínio é uma palavra forte, na altura não se disputavam ondas mas coragem.

Alguma vez pensaste em dedicar-te ao surf de uma forma profissional?
O meu culto era o free surf, até me assustava só de ouvir o nome no altifalante. Cheguei a dar dois ou três nomes possíveis que conseguimos formar com o nosso nome só para ouvir diferente. Quase que era negativo falares num campeonato, em suma, sempre na paródia! E perguntas, e se? E eu respondo: o tempo falou e na altura o meu foco era mesmo o anti-herói, como continua a ser.

Se tivesses 20 anos imaginavas-te a ter uma carreira de free surfer?
Sem dúvida, quem não?

 

 

Fala-me do triângulo mágico…
Triângulo mágico é São Julião da Barra é Santo Amaro de Oeiras, Praia da Torre e Carcavelos. Estas são as três praias que constituem este espaço, com realidades distintas e bem definidas pela geografia natural deste promontório que alberga o maior forte setecentista, o Forte de São Julião da Barra, que separa o mar do rio.

Fala de localismo…
Da tua casa ao Calhau é um caminho que é teu, os campos são teus e a praia é tua. Era assim. Eu lembro-me de entrar e as pessoas afastarem-se. E eu pensava, deixa-me cá tirar partido disto, mas se fosse preciso seria a primeira pessoa a ajudar-te na água. Nunca fui agressivo. Era normal baterem-me à porta. E às vezes era o gajo que tinha sido roubado e lá ia eu fazer a ponte, tentar resolver o problema.

Mas havia cavalaria na praia?
Havia cavalaria, havia infantaria, havia brigada de minas e armadilhas e eu tirava partido dessa má imagem de alguns dos meus amigos. O bairro da Medrosa mandava no Calhau, de uma forma natural.

E para além das ondas, havia festas na praia à “Big Wednesday”?
Passei anos a acabar os dias na praia a tocar congas. Fogueira e chouriço, que noites alucinantes. Tudo a dançar e a cantar. O surf foi um meio social fortíssimo.

Aventuras fora do triângulo.
Uma vez na Praia azul estávamos a surfar e assistimos à queda de uma avioneta. Eu, o Pinóquio, o Canelas e mais um bodyboarder da zona resgatámos os tripulantes. Houve uma senhora que morreu no embate. Mais tarde saiu um anúncio no jornal à procura das pessoas que tinham feito o salvamento e fomos à Câmara Municipal de Torres Vedras receber uma medalha de mérito, com um salão nobre cheio de Vereadores, Presidente, etc.

 

 

Durante a nossa conversa o Ratos contou-me tantas histórias, que o difícil mesmo foi ter que escolher as que ficavam nesta entrevista. Os Verões em Peniche onde foi nadador salvador no meio da baía, entre 1988 e 1990, as temporadas no sul em Vale da Telha, surfando as ondas da região, Amoreira, Monte Clérigo, Arrifana.

Faltava-me uma pergunta e fi-la de uma forma rápida.

E hoje, ainda vais ao mar?
Neste momento não tenho muito tempo, mas quando vou ao mar levo um Malibu. Mas mandei fazer uma prancha ao Lacrau, exactamente como eu queria, amarela e vermelhinha com um pin line, tri fin 6.7, só que o surf é paddling e não tenho tido actividade suficiente para estar lá com ela. O surf é o momento em que tu tens braços para remar à velocidade da onda e tens o momento em que te pões em pé e que te permite dropar. Se não tens esse momento estás sempre a cair.

Impossível não ter a sensação de que esta lenda do surf português tem uma sensibilidade rara e está sempre pronto para um elogio ao próximo. Encontra facilmente adjectivos que engrandecem os homenageados. Foi para o Dapin, para o Saca, para o Narciso, para o Paulo Inocentes, para o Peixe, para os Rocha e até para o Pecas, que apelidou carinhosamente de “Pequinhas”. Foi preciso dizer-lhe, constantemente, que eu estava ali para escrever sobre ele, pois o seu discurso era um elogio permanente aos outros surfistas.

Fiquei, ainda, com a certeza de que estava perante um soul surfer mas também de um filósofo.

O Surf somos nós e estas histórias, não são só as marcas e estes interesses (também são, mas depois das pessoas).

O surf muda a vida de uma pessoa.

O surf é como o relógio estar parado. É como se fosse sempre a primeira vez.

Quem faz surf descobre o ouro. Não precisas de ser bom, ganhas uma alegria que só depende ti.

Aloha Rui!

 

 

Trabalha esse paddling, pois queremos ver-te de novo nos tubos de Carcavelos!

Para ler mais textos de João “Flecha” Meneses visita o seu blog “Caderneta de Mar”.

Sobre o Autor:
João “Flecha” Meneses | Com cerca de três décadas de surf nos pés, “Flecha” enquadra dois adjectivos de respeito no surf, “underground” e “Soul” surfer. Originalmente local das ondas da Caparica, João tornou-se residente da Ericeira há mais de uma década e é um daqueles surfistas que não aceita insultos do “Sr. Medo”. Nos seus tempos livres é escritor de mão cheia e esta é mais uma grande colaboração com a ONFIRE.

Comentários

Os comentários estão fechados.