Tenho um assunto que ando a remoer há tempo demais. Tem a ver com expectativa/ realidade, e já agora, em jeito de letra de música, acrescento maturidade.

Estava aqui a reler uns textos antigos neste dia de chuva. Há quem opte por ir ao arquivo e fazer uns posts de dias de sol, mas a mim deu-me para isto, confrontar-me com o que escrevi há uns anos e perceber se ainda estou de acordo comigo. Fui parar, propositadamente, a um texto que escrevi sobre o estilo do surf português. Ao relê-lo, não mudava uma única palavra. O texto foi um claro elogio a alguns surfistas portugueses e uma chamada de atenção para algumas instituições. Apenas isso.

Passaram-se alguns anos e há um tema que é recorrente e mais do mesmo. Quem será o próximo surfista português na elite mundial? Parece aquela conversa de café ou de elevador, que anda ali à volta dos preços dos combustíveis ou da chuva que não aparece.

Em primeiro o tema é sempre discutível, o que é a elite mundial? Mas vamos partir do pressuposto que a conversa de café se refere à WSL. Para mim alguns dos melhores surfistas não estão no tour da WSL, mas admitamos que uma grande parte está lá. Agora vamos perceber como é que eles lá chegaram. Vieram numa nave espacial, quase sempre de países com uma grande tradição de surf e com muitas gerações no calendário solar. Pois bem, chegaram naturalmente, porque vêm de um planeta diferente do nosso. Eu diria que uma significante percentagem dos freesurfers desses países é melhor que qualquer surfista português que ande pelos pódios dos campeonatos regionais e nacionais. E era aí mesmo que eu queria chegar. A competição! Competir é das melhores formas para evoluir. É nessa arena das licras coloridas que a superação surge aos minutos e aos segundos, onde técnica, resistência e cabeça, precisam de se abraçar para poderem festejar a cada toque de buzina, anunciando o final da bateria. Acho que estamos todos de acordo em relação a isso. Mas se não estiverem, continuem a ler, é sempre bom percebermos através das palavras dos outros, o quão estamos certos e eles errados.

Estilo, fluidez, suavidade, sintonia com o mar e leitura de ondas. Como se consegue? Com dedicação, humildade, muitas horas dentro de água, experiência, visualização de filmes a babar a almofada no sofá numa tarde de chuva, mergulhos na cultura do surf nacional e mundial e também um pouco de sorte, pois o estilo não é para qualquer um.

E é precisamente nestas áreas que temos ainda muito por escalar. Vou ser mais específico, vou dar exemplos claros. Embora lá.
Tocou a buzina:
Voar com um simples aéreo, clean, em vez daqueles tiques com “reverses” automáticos de quem não sabe mandar um cutback;
Encaixar 2 manobras bonitas em vez de tentar 3 de bengala e já quase a mandar a toalha ao chão;
Saber ganhar velocidade e “atacar” a onda com bottoms eficazes, sem grandes interrupções da 2ª para 3ª mudança, para não estragar a caixa de velocidades. Fluidez na condução;
Deixar de surfar de forma robótica, sem personalidade, sem criatividade e imitando o inimitável;
Convidar o “treinador” para surfar, com o objectivo de perceber se ele é um Zulmiro ou é mesmo um surfista que sabe do que está a falar. É que a transmissão do capital cultural é tão ou mais importante que o talento natural;

Saber deslizar dentro de um tubo e usufruir do momento à surfista, saindo com um sorriso enquanto se é varrido pela “baforada” de espuma;

Surfar todo o tipo de mares e estar lá dentro porque sim.
E por fim, sem invejas e dores de cotovelo, observar o Francisco Mittermayer, que não sei o que será no futuro, se um grande competidor, um free surfer talentoso, ou apenas mais um gajo feliz dentro de água. Apenas sei, que por agora, é um puto que nos deve inspirar pela mestria, suavidade, técnica, estilo e sintonia com a onda. Tem cabelo loiro e não se veste de preto mas podia ser um Ninja a saltar do telhado.

E é isso que se quer para uma nação que tem como aspiração ter mais um surfista na elite mundial.

Sobre o Autor:
João “Flecha” Meneses | Com três décadas de surf nos pés, “Flecha” enquadra dois adjectivos de respeito no surf, “underground” e “Soul” surfer. Originalmente local das ondas da Caparica, João tornou-se residente da Ericeira há quase duas décadas e é um daqueles surfistas que não aceita insultos do “Sr. Medo”. Nos seus tempos livres é escritor de mão cheia e esta foi mais uma grande colaboração com a ONFIRE.

Comentários

Os comentários estão fechados.