Não sei se acontece convosco. Nem todos temos o mesmo gosto literário e ser surfista não nos torna iguais em tudo, mesmo partilhando este vício que nos comanda a vida. Mas aproxima-nos. Não sei se acontece convosco, mas eu por aqui sinto falta das palavras do Cadilhe. Sim, desse mesmo, do Gonçalo, do surfista da Figueira da Foz. Quem começou a surfar nos anos 90 habituou-se a lê-lo. Eu habituei-me de uma forma sôfrega, ansioso por cada palavra, por cada texto, ansioso por viajar dentro e fora do meu país. Na altura ele tinha a importância que outros escritores têm agora na minha vida. O Gonçalo era um Paul Theroux, um Bowles, um Tiziano Terzani, um Sepúlveda ou um William Finnegan.
Viajei pelo mundo com as palavras dele, viajei por mares e continentes e tornei-me íntimo de pessoas que nunca conheci. O Gonçalo levou-me às melhores ondas do mundo, mas também me levou aos países mais pobres e às pessoas simples das aldeias, das vilas, levou-me a vidas diferentes da minha. Levou-me aos pescadores de praias sem nome, levou-me a surfar com pranchas simples rodeado de natureza luxuosa. Levou-me com ele em tantas estórias. Percorri o Sri Lanka, a África do Sul, a Nova Zelândia, a Austrália, El Salvador, México, Panamá, Peru, Equador e até a Madeira. Cruzei-me várias vezes com ele, não fisicamente mas nos sentimentos, nas palavras. Estive em alguns países que mencionei sem nunca lá ter estado e noutros já lá tinha estado antes de os visitar, porque ele chegava quase sempre primeiro e com a magia dos seus textos transportava-me para os cenários.
A literatura do surf era pequena para o mundo de um homem que viu e vê para além das ondas. Tanto por explorar, tanto por escrever. E ainda bem! Planisfério Pessoal, África acima, Nos Passos de Magalhães, O Esplendor do Mundo, são alguns dos livros que fazem parte da sua obra enquanto escritor de viagens. Creio que a maioria dos seus leitores não são surfistas, mas também creio que nós, os que o acompanhámos quase desde o início, sabemos sempre que por detrás desse olhar de escritor viajante está um surfista viajante. Bem sei que para ele já é raro viajar com a sua prancha. É fácil compreender, a massificação do surf tornou quase incompatível viagens de aventura com viagens com quilhas, wax e calções de praia. E o Gonçalo, nesse campo, tem voltado às raízes e dedica-se mais às ondas da sua Figueira. Por vezes as melhores viagens estão mesmo ali, ao atravessar a rua. Ah pois estão!
Não sei se acontece convosco, mas por vezes sou inundado por uma espécie de nostalgia que me leva a abraçar livros e filmes antigos, sempre com a máxima de que o melhor ainda está para vir, o melhor ainda está para ver, para escrever e para fotografar com os nossos olhos.
Gonçalo, apeteceu-me escrever-te porque me ajudaste a ver mais além, apeteceu-me dizer-te que para mim as tuas palavras são tão ou mais importantes que as do escritores do primeiro parágrafo.
Não sei se acontece contigo, mas às vezes tenho uma vontade de partir de prancha às costas para outras aventuras, quem sabe um dia África abaixo, ficando ali uns dias pela Libéria, Serra Leoa ou por qualquer outro país que nos permita ver, sentir e ao mesmo tempo deslizar daquela forma que só tu, eu e nós, sabemos fazer.
Por mais que viaje, nunca me esqueço que No Principio Estava o Mar.
Para ler mais textos de João “Flecha” Meneses visita o seu blog “Caderneta de Mar”.
Sobre o Autor:
João “Flecha” Meneses | Com quase três décadas de surf nos pés, “Flecha” enquadra dois adjectivos de respeito no surf, “underground” e “Soul” surfer. Originalmente local das ondas da Caparica, João tornou-se residente da Ericeira há mais de uma década e é um daqueles surfistas que não aceita insultos do “Sr. Medo”. Nos seus tempos livres é escritor de mão cheia e esta é mais uma grande colaboração com a ONFIRE.
(Uma surf trip à Nova Zelândia, será que Flecha visitou este local presencialmente ou pelas palavras de Cadilhe)
Comentários
3 comentários a “Uma carta para a Figueira da Foz | By João “Flecha” Meneses”
Há uns anos atrás tive a sorte de ir sozinho, com mochila às costas e uma só prancha debaixo do braço, explorar África durante um par de meses. Alguém me tinha inspirado a fazê-lo. O avião aterrou em Maputo e segui directamente para uma direita, que ficava a umas hrs de caminho. Chego ao dito vilarejo e decidi mandar um surfito antes sequer de ter arranjado sítio onde dormir. Estava apenas um “local” a partilhar comigo as ondas e que me pergunta o que estava ali a fazer. Disse-lhe que tinha lido sobre aquela onda, porque um surfista da Figueira da Foz tinha escrito sobre ela. Era o dono da casa onde o Gonçalo tinha ficado alojado, durante a sua estadia. Entre sets arranjei uma estadia e um amigo. Fiquei alojado no quarto que serviu de inspiração para um capítulo, de um certo livro, com vista de canto para a onda. Assim começou o meu primeiro dia em África. Gonçalo, obrigado por seres uma fonte de inspiração. Flecha, obrigado pelo texto.
???❤️❤️
Viva Joao obrigado pelas tuas palavras. Que o mar nunca nos falte! ?uma vez que nós, tal como escreveste, já nos cruzámos tantas vezes mas nunca nos encontrámos fisicamente, deixo-te o convite de apareceres pela Figueira um dia destes para partilharmos algumas ondas, memórias dos anos 90 e mais património que haja em comum ? saúde ?