Uma barraquinha e um cavalete cá fora onde uma prancha aguarda na sala de operações. Um cantinho verde e os teus cães sempre presentes. Lá em baixo a onda mais perfeita de Portugal. Aqui em cima estás tu Zé, homem simples de Ribamar e um ser errante como tantos outros. Contavas-me, às vezes repetidamente, que há muitos anos te tinhas esquecido na clínica de desintoxicação de uns slides antigos com fotos históricas das ondas mais perfeitas da Baía dos 2 Irmãos. Foi a malta da fábrica de pranchas que te deu. Devia ser para te dar força. Para te lembrares do mar aqui de Ribamar.

Era apenas teu cliente mas conhecia-te como alguém com hábitos. Passear os cães e desceres na tua mota para observares as ondas da baía. Não ias à água mas no teu sítio sabia sempre se as ondas da semana tinham sido fortes. Alguns locais corajosos deixavam as pranchas ao teu cuidado nos dias de pancada. Tratavas delas, davas-lhes esperança e um prolongar de vida.

Sabes Zé, gostava de parar no teu cantinho, ao lado daquela curva apertada antes do moinho e da marisqueira cheia de domingueiros que não sabem ver o mar sem ser através de janelas e a martelar sapateiras. Esse cantinho tinha cheiro a maresia com resina e posters de surfistas que ainda hoje invejo e de mulheres morenas de corpos perfeitos que é difícil não desejar. Tinha pranchas cheias de história e de sonhos. Sonhos que já não quiseste seguir. Eras um gajo solitário, é verdade, mas tinha dias em que falavas tanto que eu perdia a maré. Caraças, podias continuar a falar, eu ouvia-te, juro!

Soube há uns tempos, mas só agora decidi escrever-te. Puseste fim à vida, seu sacana! Nem me deste tempo para ser teu amigo. Nem sei se algum dia iria ser. Mas talvez a amizade seja feita de coisas simples, como esperar por ti enquanto bebias o teu galão no café do mercadinho. Uma espera interesseira, eu sei. Afinal só queria a prancha pronta para deslizar nas ondas. A minha droga Zé! Aquela que me vicia o corpo e a alma e me dá muitas cicatrizes! Mas faz-me viver a vida com um sorriso louco!

Fod@$$e Zé, com o paraíso ali em baixo e tu fazes uma merd@ dessas…

 

 

Para ler mais textos de João “Flecha” Meneses vista o seu blog “Caderneta de Mar”.

Sobre o Autor:
João “Flecha” Meneses | Com quase três décadas de surf nos pés, “Flecha” enquadra dois adjectivos de respeito no surf, “underground” e “Soul” surfer. Originalmente local das ondas da Caparica, João tornou-se residente da Ericeira há mais de uma década e é um daqueles surfistas que não aceita insultos do “Sr. Medo”. Nos seus tempos livres é escritor de mão cheia e esta é mais uma grande colaboração com a ONFIRE.

Comentários

Um comentário a “O Zé de Ribamar | By João “Flecha” Meneses”

  1. Miguel diz:

    Parabéns Flecha pelo texto simples e incisivo como tem de ser. Um forte abraco