Nos últimos meses Zulmiro andava ansioso. A profissão das 9h às 18h que outrora lhe dava estatuto e lhe pagava as férias no Algarve e a viagem anual aos resorts tudo incluído, estava a escorregar dos seus planos para o futuro. O seu chefe, um miúdo com 30 anos, 10 primaveras mais novo e formado numa das melhores universidades de Inglaterra, estava a criar-lhe algumas dificuldades no dia-a-dia. Primeiro chamou-o à atenção pelas longas horas de almoço bem regadas com o melhor vinho alentejano e depois reduziu-lhe o budget no cartão de crédito destinado às despesas com os clientes. A coisa estava a ficar difícil, a gama do mercedes era a mais baixa de sempre e os tempos adivinhavam-se de muito aperto.

Numa das últimas almoçaradas com uma das 3 namoradas que não sabiam da sua tendência para a poligamia, mesmo ali à beira mar, numa praia da Linha de Cascais, Zulmiro reparou numa espécie de “desembarque militar ao contrário”, com soldadinhos de prancha que entravam para a água. Eram às dezenas, acompanhados por algumas pessoas que vestiam umas licras florescentes onde se lia, “instrutores”. Sabia que o surf era agora uma nova tendência de desporto e de negócio. Lembrava-se vagamente do mundo das ondas nos anos 90 e de alguns nomes sonantes como o Dapin ou o Marcos Anastácio. Costumava frequentar a praia nas manhãs de inverno quando decidia tomar o pequeno-almoço depois de uma noite de arromba na discoteca mais badalada da capital. Lembrava-se de gozar com aquela malta que acordava cedo e carregava um pedaço de fibra de vidro dentro de uma capa mendiga. Olhava com desprezo para os cabelos compridos e as peles bronzeadas que lhe lembravam homens da construção civil ou hippies sem casa.

“Estes vagabundos não vão longe.

Pensava tantas vezes…

Tinham passado mais de 20 anos e Zulmiro estava a mudar de opinião em relação ao desporto das ondas. Não que tivesse vontade de se tornar um homem do mar. Já tinha experimentado o choque térmico provocado pela água fria nas madrugadas de grandes bebedeiras e nem queria imaginar o que seria prescindir das manhãs no quentinho dos seus lençóis nórdicos, para se meter em pé numa prancha e ser engolido pela espuma branca que lhe lembrava neve fria. Aprender a fazer surf a sério não queria. Era ponto assente! Mas algo o chamava para a vida de praia. As suas amigas trintonas achavam um piadão e a pele mais escura podia funcionar a seu favor, disfarçando os dentes amarelos que eram resultado daquele vício tramado de puxar fumo para dentro dos pulmões. E o dinheiro, claro! Era um forte fator para um caminho com mais sal e areia nos sapatos, ainda engraxados…. O ponto de viragem foi quando ouviu falar de um holandês campeão de ciclismo, que aprendera a nadar há 3 anos e após 2 temporadas numa escola de pranchas coloridas, tornara-se professor de surf e até já tinha sido medalhado pelo Presidente da Câmara Municipal da zona, como um excelente exemplo de um empreendedor de sucesso.

Parecia uma loucura esta ideia, um professor de surf sem saber surfar. Mas já lhe tinham dito que não era preciso saber fazer para ensinar. Achou estranho, mas começou a gostar da ideia. Também não sabia nada da sua área de trabalho e tinha sido chefe durante vários anos na empresa onde era efetivo. Afinal, no surf as coisas não eram diferentes. Para quê esperar 10 ou 15 anos, ganhando experiência como surfista para depois poder ensinar? Levar pancada do mar, vestir o fato de borracha em dias frios e ganhar, a muito custo, o reconhecimento dos surfistas experientes nas praias e baías rochosas mais conhecidas de Portugal? Para quê aprender a ser surfista se podia ser professor de surf e ganhar umas belas massas no verão com turistas de pele avermelhada?

Zulmiro pediu mais um copo, acendeu o cigarro e cambaleou em direção à areia molhada. A tarde prometia. Já não ia voltar ao escritório e decidira, ali mesmo, que a praia seria o seu próximo local de trabalho.

To be continued…

João “Flecha” Meneses

Para ler mais textos de João “Flecha” Menses vista o seu blog “Caderneta de Mar”.

Sobre o Autor:
João “Flecha” Meneses| Com quase três décadas de surf nos pés, “Flecha” enquadra dois adjectivos de respeito no surf, “underground” e “Soul” surfer. Originalmente local das ondas da Caparica, João tornou-se residente da Ericeira há mais de uma década e é um daqueles surfistas que não aceita insultos do “Sr. Medo”. Nos seus tempos livres é escritor de mão cheia e esta é mais uma excelente colaboração com a ONFIRE.

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