Na última quarta-feira, o Tiago Pires protagonizou um dos momentos mais bonitos da história do surf português, ao lançar flores em homenagem ao nosso Dapin, na Praia de Carcavelos. Foi um momento de virar a página e dizer entre fronteiras e fora delas, que nós já temos uma história que merece ser contada e partilhada. Nós somos Portugal e caminhamos para a terceira geração de surfistas. Nós não somos a Califórnia da Europa. Nós somos o que somos! Um País bonito, com todos os seus problemas e com uma costa cheia de ondas perfeitas, capaz de fazer inveja a qualquer australiano da costa oeste, ou havaiano do North Shore. Mas eu não queria falar da nossa costa. Lá ia eu disparado. Quando começamos a falar de ondas somos picaretas falantes, sem relógio e com todo o tempo do mundo. Que nos perdoem os não surfistas. Eu queria falar do “Saca” e queria falar de uma forma parcial. Queria falar através do meu olhar sobre este gigante do surf mundial.

Eu vi o Saca a surfar pela primeira vez no Circuito de Esperanças Lightning bolt. Era um circuito que se estendia até aos sub21 e tinha diversas categorias. Na altura em que eu competia, ele devia estar nos sub14 e depois nos sub16. Eu andava por lá completamente despercebido, surfista de meia tabela, com um único resultado “expressivo”, uns quartos-de-final numa etapa com muitas faltas de comparência. Esse anonimato permitia-me observar sem ser observado. Os observados, os ídolos, as vedetas do circuito, à excepção do André Pedroso da Praia Grande, do David Luís, do Francisco Rodrigues (ainda um bebé) e do Hugo Lemos da Caparica, eram os surfistas da Linha, como o Ruben Gonzalez, o David Raimundo, o Xaninho, o Pecas, o Carlos Bakker, entre tantos outros, que se destacavam perante a multidão.

Da Ericeira, vinha sempre um grupo muito pequeno, composto pelo Saca, Gil, Liliana, o puto Xico e mais um ou outro. A futura reserva de surf já era um campo de treinos para os melhores, mas não produzia campeões em massa. O grupo vinha acompanhado por um surfista mais velho responsável pelo clube, que metia os putos em ordem e como o grupo era de dimensão reduzida, por vezes também queria meter na ordem os miúdos dos outros grupos. Lembro-me de uma cena punk, em que a turma da Caparica, onde eu estava incluído, fez uma “obra de arte” na parede de uma casa em Leça da Palmeira, onde dormiam outros competidores. Bananas maduras, uvas e maçãs foram lançadas para um alvo… A parede do quarto! O desperdício alimentar teve como resultado uma pintura genial que podia até ser avaliada por um crítico de arte, mas o resultado resumiu-se apenas a um sermão desse adulto e, ainda, um “ide lamber os co!hõe$ do vosso padrasto, seus filhos da p…”, pela dona da casa. Grande mulher do Norte!

 

O Tiago assistiu à reprimenda do nosso grupo, caladinho, ao lado do adulto que nos dizia, “vocês assim não vão ser ninguém.”

Em parte, acertou. Daquele trio de atiradores de fruta (Tobias, Gonçalinho e eu), ninguém virou surfista profissional.

Durante os anos que se seguiram nunca mais quis saber do puto Saca, porque me vinha sempre à memória aquele momento. Bem sei que ele ainda era uma criança, mas eu tinha preferido que ele não estivesse ali ao lado daquele adulto, durante o sermão. Parecia que nós éramos a ralé, os surfistas perdidos e ele era a realeza do surf, com apenas 12 ou 13 anos. Doeu!

O Saca foi crescendo, ganhou braços fortes para remar nas ondas mais desafiantes do mundo e traçou objectivos claros, que passavam por uma carreira fora de Portugal e, um dia, chegou a Sunset Beach, com muita vontade de vencer. E foi aí que mostrou todo o seu lado punk aos surfistas mais poderosos e agressivos do Havai. Não mostrou cá fora, com cara de mau ou com frutas na parede, como nós. Mostrou lá dentro. O miúdo tímido, que conhecera em Leça da Palmeira, mostrava agora nas ondas poderosas do Pacífico toda a sua raiva, força, irreverência e rebeldia. Mostrava o seu lado selvagem. Era um gladiador pronto a morrer na arena. Ali estava o Saca, no ano de 2000, ainda muito jovem e já a trucidar ondas e adversários, rumo à final, onde venceu Andy Irons e só não trouxe o caneco para Portugal, porque encontrou um surfista ainda mais selvagem e conhecedor de todos os cantos daquele reef. O Sunny Garcia! O guerreiro luso ficou com o 2º lugar, mas para mim foi o grande vencedor! Nem a sua entrada no CT me trouxe tanta emoção. Aquele foi o momento mais alto que um surfista português podia atingir! O Saca inundou-me de orgulho, tal como o Dapin que foi vice-campeão europeu, mas bem sabemos que foi sempre o melhor nos 80 e 90. Sempre!

É coisa para dizer, que às vezes ser segundo é muito melhor do que ser primeiro.

Aloha Saca! Aloha Dapin!

Obrigado por me fazerem chorar!

Para ler mais textos de João “Flecha” Meneses visita o seu blog “Caderneta de Mar”.

Sobre o Autor:
João “Flecha” Meneses | Com cerca de três décadas de surf nos pés, “Flecha” enquadra dois adjectivos de respeito no surf, “underground” e “Soul” surfer. Originalmente local das ondas da Caparica, João tornou-se residente da Ericeira há mais de uma década e é um daqueles surfistas que não aceita insultos do “Sr. Medo”. Nos seus tempos livres é escritor de mão cheia e esta é mais uma grande colaboração com a ONFIRE.

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