Sabíamos que a aldeia existia. Sabíamos que tinha ondas de perder de vista, sabíamos que era rodeada de verde e banhada por azul, sabíamos que tinha cavalos que corriam pela praia, mas não sabíamos que muito em breve estaríamos por lá!

– Sim! Vamos à Costa Rica!

Acabáramos de votar! Dois contra um! Os vencedores argumentavam que seria uma aventura com uma bagagem cheia de ondas.

Estávamos há cerca de 15 dias na aldeia de S. Catalina, em plena selva do Panamá, mergulhando diariamente as nossa pranchas pelas ondas do Pacífico. A estadia estava a corresponder às nossas elevadas expectativas de jovens surfistas. Surf todos os dias, ondas de excelência em água quente, comida saudável, amigos novos, conversas sobre o mundo e uma varanda de bungalow suíço plantado em zona tropical com a melhor vista das redondezas!

O que podíamos pedir mais?

Como jovens sedentos de conhecimento e vontade de seguir em frente, podíamos pedir mais um país, mais uma cultura, uma estrada, uma aventura, uma onda perfeita! Podíamos pedir Pavones!

O surfista que saíra perdedor (mais tarde agradeceria a derrota), falava em muitas horas de viagem, uma fronteira instável pelos recentes ataques do 11 de Setembro e, por fim, jogava a cartada final que de nada lhe serviria perante a motivação dos 2 vencedores na busca de mais uma onda.

– E o dinheiro? Não temos dinheiro para os transportes, fica fora do nosso orçamento.

Em poucos minutos esvaziaram-se as carteiras e juntaram-se os trocos (mais tarde, na cidade de Sona fez-se um levantamento das únicas notas de uma conta jovem com sede em Portugal), arrumaram-se as pranchas, mochilas fechadas e por fim uns abraços aos amigos panamenhos, troca de contactos e frases sentidas que quase sempre falham na previsão do futuro.

– Dentro de um ano voltamos! Está prometido!

E lá fomos nós, selva fora em direcção à Costa Rica!

Com o sol a pôr-se e já com longas horas de viagem, repartidas em vários autocarros com paragens em cidades e aldeias de estrada, percorríamos agora os últimos kms numa estrada de terra batida tendo como vizinha uma baía mágica de águas azuis. O pequeno táxi transportava-nos desde a fronteira do Panamá, não tínhamos informação de que algum autocarro fizesse este percurso. A estrada enlameada dificultava a vida a qualquer veículo motorizado sem tracção às 4 rodas. Autocarros por ali, não!

Chegámos à aldeia das ondas perfeitas ao final do dia. O mar estava pequeno mas conseguíamos visualizar as linhas de espuma branca a correr a baía de uma forma incrivelmente perfeita. As ondas viviam ali em simetria poética.

Ficámos instalados numas cabinas em quartos simples, com vista para uma imensidão de verde, numa das poucas opções para albergar forasteiros e tendo como vizinhos vários esquilos curiosos. Na mesa da pequena tasquinha saboreávamos o primeiro jantar de Pura Vida, um prato de arroz com feijão preto e ovo estrelado, intervalado com a cerveja local “imperial Costa Rica”, nossa cúmplice nas gargalhadas por este País.

Acordámos com ondas “perfeitas” e sem ninguém por aquelas bandas! A onda percorria uns bons 100 metros, nada de especial para os surfistas assíduos de Pavones habituados a uma onda quilométrica. E foi por essa razão que tivemos Pavones só para nós! Nessa manhã surfámos cerca de 5 horas sem absolutamente ninguém. Dividir aquela onda com amigos, mesmo não estando nos seus melhores dia, foi o melhor que Pavones nos poderia ter oferecido.

Os dias foram passando e após as sessões de surf, a nossa presença na aldeia fazia-se sentir. Descalços no campo de futebol com relvado natural, representávamos Portugal nas “jogatanas” de futebol com os locais, entre golos e suor, lá íamos pensando nas ondas da manhã seguinte e no privilégio de vivenciarmos o quotidiano deste pequeno paraíso. Outras deambulações pela felicidade eram os passeios pela boca do rio. E depois vinham os finais de tarde passados na mesa de matraquilhos, com belos petiscos no pequeno café do final da baía que tinha o privilégio de ver a onda adormecer. Estávamos a sentir a aldeia e sabíamos que ela gostava de nos sentir. Como todos os surfistas que viajam, há sempre a vontade de marcar a sua passagem por uma onda, por um lugar. Desejam ser lembrados quando um dia regressarem.

O surfista que tinha perdido na votação (agora agradecia a derrota), rejeitando a viagem até à aldeia isolada, redimia-se com o seu surf. Sendo goofie, era o que melhor surfava aquela bela parede azul que rolava para a esquerda da baía, estando em perfeita sintonia com o mar. Em cada manobra de lip ou de rail, pensava no triste erro que seria se tivesse optado por não seguir mais além na viagem. Sentia que tinha que se dedicar aquela onda como quem tem a ultima oportunidade para amar uma mulher. Sem mais erros! Tocá-la de uma forma delicada, senti-la, respeitá-la, compreende-la. Uma viagem só deles. E assim o fez! Surfou a onda da aldeia perdida com toda a sua experiência de surfista, com toda a admiração que um homem do mar sente por uma onda que o preenche. Nas secções rápidas fluía com entusiasmo e nas partes moles, enquanto a onda descansava, esperava por ela, abraçava-a curvando os rails da sua prancha em direcção à espuma branca (chamar cutback seria uma palavra bruta perante tamanha harmonia), daí partiam novamente os dois em velocidade, percorrendo a baía até se despedirem um do outro, umas vezes com um sorriso, outras com gritos de alegria, como crianças em hora de recreio. Bem, não se tratava de uma despedida, era apenas um até já, pois em poucos minutos estariam outra vez abraçados

O surfista perdedor da aposta acabara de ganhar um novo amor. A onda de Pavones!

 

 

 

Para ler mais textos de João “Flecha” Meneses visita o seu blog “Caderneta de Mar”.

Sobre o Autor:
João “Flecha” Meneses | Com quase três décadas de surf nos pés, “Flecha” enquadra dois adjectivos de respeito no surf, “underground” e “Soul” surfer. Originalmente local das ondas da Caparica, João tornou-se residente da Ericeira há mais de uma década e é um daqueles surfistas que não aceita insultos do “Sr. Medo”. Nos seus tempos livres é escritor de mão cheia e esta é mais uma grande colaboração com a ONFIRE.

 

João Kopke, quase 20 anos mais tarde, também fez a peregrinação…

Comentários

2 comentários a “Peregrinação a Pavones | Por João “Flecha” Meneses”

  1. João Antunes diz:

    Essa ainda está na minha lista mas eramos só dois e havia um empate e aí a prioridade é sempre dela! 🙂