A madrugada estava fria. A estação de comboios gelava os corpos dos miúdos com correntes de ar vindas de todas as direcções. Slater, o atrasado do costume, tinha-se atrasado uma vez mais e perdera o avião para Lisboa. Enquanto aguardava pelo próximo voo ou dormia no quentinho da sua casa na Flórida, três cabeças loiras procuravam dormitar entre as cadeiras do átrio da estação e os bancos dos comboios que descansavam no apeadeiro.
Os putos tinham comprado um bilhete de comboio Lisboa-Figueira ida e volta. Não havia margens para derrapagens financeiras de bolso. Não havia dormidas confortáveis, carrinha de escola de surf e monitor responsável. O plano era caminhar da estação até à praia do Cabedelo, ver os prós em acção e regressar a Lisboa no mesmo dia. O calendário marcava 1996 e Slater iria conhecer Portugal pela primeira vez e lutar por mais um título mundial. Os putos iriam conhecer a famosa onda da Figueira e os encantos de mais uma cidade do seu País. Eram surfistas, destas vez sem pranchas. Slater, Powell ou Padaratz, estavam lá para lhes mostrar as potencialidades da onda. Eles sabiam que havia dias assim, de pura aprendizagem fora de água. As pranchas descansavam em Lisboa.
A voz do speaker do evento anuncia que Slater não vai chegar a tempo do heat. Só no dia seguinte, diz. Regressar a Lisboa sem ver o menino-prodígio era uma opção. A outra seria multiplicar as poucas moedas de bolso nas máquinas do Casino. Com as receitas desse rasgo empreendedor podiam pagar a dormida. Não preciso dizer qual o caminho que escolheram.
– Dormíamos em grande naquele hotel central, tomávamos o pequeno-almoço com vista para Buarcos e com sorte ainda comprávamos umas pranchas americanas.
Aprenderam cedo que o vício do jogo não compensa. Em poucos minutos o mealheiro foi engolido pelas máquinas reluzentes que rolavam desenhos de fruta. Nas mochilas restavam umas maçãs verdadeiras, uns frutos secos e a revista para ser autografada. Voltaram à Estação, não para apanhar o comboio de regresso a casa mas para dividir o frio e o sono com um intrigante vagabundo que falava francês. Voltar a Lisboa? Ainda não.
No dia seguinte a praia do Cabedelo estava mais brilhante com a presença do americano de olhos verdes. Bruno Charneca compete bem e faz história ao vencer o ídolo adormecido. Slater sai da água e os três jovens estão de camarote em primeira fila, como caranguejos entre a areia e o mar. Com os joelhos molhados, num inglês tímido e a gaguejar, talvez ainda recuperar do frio da madrugada e com a bochecha direita marcada pelo cadeirão do comboio, um dos putos em representação dos três, avança:
Kelly, you lost your heat but you still the best!
O comboio chega a Lisboa, a estação de Santa Apolónia está quase vazia. Ninguém os aclama. A febre enrosca-se nos seus corpos. E a cabeça, essa caderneta de recordações, completa-se com a aventura de final de verão.
Para ler mais textos de João “Flecha” Menses vista o seu blog “Caderneta de Mar”.
Sobre o Autor:
João “Flecha” Meneses| Com quase três décadas de surf nos pés, “Flecha” enquadra dois adjectivos de respeito no surf, “underground” e “Soul” surfer. Originalmente local das ondas da Caparica, João tornou-se residente da Ericeira há mais de uma década e é um daqueles surfistas que não aceita insultos do “Sr. Medo”. Nos seus tempos livres é escritor de mão cheia e esta é mais uma excelente colaboração com a ONFIRE.
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