Quando se fala em Cabianca, muitas vezes fala-se em Medina, o tri-campeão mundial que usa as suas pranchas quase exclusivamente. Mas, muito antes de Gabriel Medina sequer se ter iniciado no surf já Johnny trabalhava na área, evoluindo prancha a prancha até aos seus caminhos se cruzarem e, em conjunto, fazerem história. Fica a conhecer a história de Johnny Cabianca, um shaper de personalidade humilde e um talento fora de série nas mãos…

 

 

Como começou o seu percurso como surfista?
Eu sou de uma família da cidade de São Paulo que frequentava muito o litoral, Guarujá e Santos, aquela área da costa de São Paulo. E claro, o surf começou ainda em criança e com 12 ou 13 anos já surfava com pranchas de fibra. Pouco depois, com 14 ou 15 anos, já fazia os remendos na prancha do meu irmão, e depois nas dos nossos amigos.

Quando começou a trabalhar com pranchas?
Em 1980 um amigo meu de São Paulo, também apaixonado pelo surf, criou uma marca chamada Summer Birds e começámos a fazer pranchas. O que mais fazíamos era remendos mas, depois, fizemos uma prancha inteira e, claro, a primeira foi para o meu irmão. Mais tarde, entre 82 e 84, a coisa começou a crescer e mudámo-nos para um espaço maior para aumentar a produção. Ainda me lembro que, quando fizemos pela primeira vez 9 pranchas num mês comemoramos muito. Foi uma época boa, de muito aprendizado, no Brasil não se encontrava nenhum tipo de informação de como fazer e naquela época não existia google. Era chegar a uma loja e comprar resina “cristal”, nem se dizia poliéster, a fibra de vidro era o que vinha, só descobrimos o que eram onças mais tarde, e o bloco de PU da época, que eram da Clark Foam expandidos no Brasil. Fazíamos pranchas com polimento, quilhas fixas, pigmento ou pinturas de airbrush, fazíamos o que víamos nas revistas e aprendíamos com os erros.

Como foi o percurso a partir daí?
Em 1990 o meu sócio na Summer Birds decidiu seguir outro caminho e eu continuei, a fazer as pranchas e a shapear. Até aí tinha sido laminador apenas, mas peguei na plaina e comecei a fazer pranchas para o meu irmão e os nossos amigos. Nessa altura frequentava a Praia de Maresias e aí consegui ter uma expressão maior, dentro dessa comunidade. Tinha ali o meu grupo de amigos e fazia pranchas para eles em meu nome. Foi quando um grande amigo meu, o Dr. Luciano Leão, o inventor da máquina DSD, me chamou para trabalhar com ele, em 1993. O plano era ele afastar-se da fábrica que ele tinha, a Surface, e eu ia ficar como a pessoa responsável por ela porque ele teria que desenvolver o software e a máquina. Em 95 a máquina já estava pronta e foi feita a primeira venda, para o Jeff Bushman no Havai. E assim começou tudo, comecei a aprender informática e o programa DSD e assim passei a ter contacto com vários shapers e fabricantes de pranchas de fora do Brasil, pois eles vinham atrás dessa tecnologia. Foi quando surgiu o primeiro convite para ir conhecer a Europa. Eu vim parar à fábrica da Full&Cas, em 2000, depois fui para a Pukas, onde estive três semanas a montar a máquina, e de seguida fui para Portugal, montar a máquina da SPO com o Hugo Cartaxana em Santa Cruz. O Hugo, é um grande amigo e uma grande pessoa e estive por lá até 2002. Em junho de 2002 apareceu o Jeff Bushman, que tinha estado a trabalhar na fábrica da WatSay em Sopelana, e passou em Santa Cruz à minha procura para me fazer um convite para ir para o Havai. Em julho de 2002 mudei-me para lá.  Trabalhei no Havai até julho de 2003 que foi quando o Ignacio, o gerente da Pukas, me convidou para voltar à Europa e dar uma ajuda nos cortes e também trabalhar como shaper e back shaper, então eu voltei para a Europa.

Esteve quanto tempo na Pukas?
Foram 11 anos, em San Sebastian, foi um tempo de crescimento, a ver como funcionam grandes produções, a conviver com grandes nomes que passaram pela fábrica, onde eu ajudava a desenhar e na adaptação ao sistema DSD. Fiz o meu trabalho, sempre muito conectado com toda a produção a tentar melhorar sempre durante a minha passagem pela Pukas. Passaram também muitos atletas, foi uma época muito boa onde eu trabalhei com o falecido Leo Neves, e atrás dele já veio o Sunny Garcia, o que me trouxe muita exposição no meio dos surfistas.

E como surgiu a ligação com Gabriel Medina?
Como sou praticamente de Maresias, tenho um grande amigo meu que fazia parte da minha “quadrilha”, o Charles, que é o padrasto do Gabriel Medina. A gente sempre estava junto quando eu voltava ao Brasil e eu fui vendo ele crescer, a evolução dele no surf, nas competições de base no Brasil e ele foi sempre muito diferenciado, muito bom. Quando, com 15 anos, ganhou um campeonato 6 estrelas na Praia Mole, em Santa Catarina, ele seguiu para a Europa e ficou na minha casa, em Setembro de 2009. Foi uma época “divisora de águas”, na minha vida, na vida do Gabriel, no surf em geral, foi o ano em que ele veio e conquistou muito, fez aquela apresentação no King of the groms, 5 notas 10 durante o campeonato, duas na final e o nome dele começou a aparecer no cenário mundial. A partir de 2009 até 2014 foram anos de muito trabalho com o Gabriel até ao título mundial. Nesse ano, depois de uma série de divergências com a Pukas, vi-me obrigado a sair, quis voltar para o Brasil com a minha esposa e o meu filho recém nascido, algo que considero positivo pelo meu filho, por ele ter estado perto da minha família, mas negativo por eu ter voltado ao Brasil. É um país muito complicado, muito difícil, tinha passado muito tempo aqui pela Europa. Mesmo tendo um atleta campeão do mundo apanhei muito e vi-me forçado a voltar para a Europa já com a ideia de querer montar um negócio meu, ter uma fábrica minha e, claro, Zarautz foi uma opção boa, é onde estou até hoje.

 

 

Na altura em que começaram a trabalhar já tinha a percepção que o Gabriel tinha potencial de se transformar num dos melhores surfistas de todos os tempos?
Sempre vi muitos atletas do Brasil a aparecerem e desaparecerem. Eu achava que era mais um “garoto” que estava vindo de São Paulo com um potencial grande, mas não se sabia o que ia acontecer no futuro. Claro, ele vinha com atitude para ganhar, ele entrava sempre com uma postura muito diferenciada em cima de qualquer atleta que fosse com ele numa bateria. E o que acontecia é que ele ganhava, sempre. Se vamos falar do trabalho com o Gabriel, claro, foi um começo tímido da minha parte, e foi uma coisa que eu, mesmo duvidando, passei a acreditar e ver que o meu trabalho estava a dar um efeito positivo. A principio eu achava que ele devia usar outras pranchas (de outros shapers). A cada lugar que ele ia, por eu ter contacto com outros shapers, tanto na Austrália como na América, eu sempre deixava preparada alguma prancha para ele, uma Lost ou uma DHD ou Tokoro. Mas o feedback era sempre que as minhas pranchas funcionavam melhor. Fomos trabalhando em cima disso, e a partir daí ficou quase exclusivamente comigo. Eu fui acompanhando a evolução do corpo dele, fui diferenciando os meus desenhos e mantive algumas linhas antigas como eu tenho até hoje. Tenho modelos dele como o DFK, The Freak Kid, que tem esse nome porque o Martim Potter estava a fazer de speaker no King of groms, ficou assombrado com a apresentação e quando ele entrava na bateria dizia, “look, the freak kid”. Então eu tive que fazer um modelo que existe desde essa época até hoje, o DFK, e quando encontro o Potter a gente dá muita risada disso.

Como tem sido trabalhar com um surfista deste calibre ao longo dos anos?
O Gabriel é uma pessoa que, além de um grande amigo, é um atleta que botou o meu nome dentro do cenário mundial. Apesar de todos os problemas pessoais, acabei virando um confidente, tentando entender a situação também que ele passa. Mas é uma pessoa que a gente quando está junto dá muita risada, sempre celebrando todas as vitórias, eu acho que ele está na metade da sua carreira, vai ganhar muita coisa ainda.

Quantas pranchas o Gabriel Medina encomenda por ano?
O Gabriel sempre foi uma pessoa muito correcta com as pranchas, ele nunca pediu a mais do que ele necessita. Na época da Pukas ele era um atleta que usava poucas pranchas, acho que ele chegava a fazer só 25 por ano, usava uma prancha em três campeonatos, nunca foi exagerado nesse sentido. A partir de 2014 tivemos um acerto, muitas marcas apareceram oferecendo mundos e fundos para ele, empresas grandes do meio da fabricação de pranchas mas ele decidiu continuar comigo. Falou comigo, e disse, “Johnny, preciso de pranchas para treino, para pré-temporada, preciso de variação de modelos, de curvas, para ondas grandes e ondas pequenas”. Eu “botei” um número, são 10 etapas por ano, se fizermos 10 por etapa seriam 100 pranchas num ano, mais pré-temporada e treino, 100 a 120 pranchas, e a gente manteve isso até antes da pandemia. Agora no ano da pandemia não teve campeonatos, foram pouquíssimas as pranchas que eu fiz, e para 2021 também, não foram muitas pranchas e veio o 3º título. Mas ele sempre foi muito tranquilo, nunca se preocupou com o que ele tinha, estava sempre bem confortável, bem atendido. Graças a Deus, tudo funcionando, e estamos aí, até hoje.

 

Que modelos de prancha ele usa mais?
Ele não gosta de confusão, tem o modelo dele DFK, algumas The Medina, que é uma prancha mais reta, com menos concave que dá para dias piores.

Sente que os shapers brasileiros não são tão bem aceites a nível mundial como os australianos ou norte-americanos?
Não são muitos os shapers brasileiros com reconhecimento a nível mundial, podemos considerar como nomes de ponta o Xanadu, o Márcio Zouvi, eu e algum outro. Alguns bons shapers ainda estão escondidos por detrás de nomes de marcas, ou de outros shapers. Mas o mercado, para ser bem sincero, é um mercado complicado, tanto no Brasil como na Europa. O mercado pertence a americanos e australianos, hoje em dia você tem uma marca que nem a Channel Islands, que não tem shaper, teve na época o Al Merrick, e segue vendendo um montão. Líderes de mercado hoje, com produções massivas, são marcas australianas e americanas. A gente vai seguindo o fluxo, seguindo o que conseguimos vender, é difícil a gente se manter no mercado. Hoje você vê o Márcio Zouvi até bem posicionado a nível mundial, a fazer um bom trabalho, e, claro está há mais de 40 anos na América, praticamente ele é considerado um nome americano.

Como tem sido a implementação da Cabianca Surfboards pelo mundo?
Eu, com a minha imagem de brasileiro e com um atleta número 1 do mundo, brasileiro, é mais difícil, tem uma aceitação mínima. Estamos bem, estamos a vender um número bom de pranchas, eu tenho muito a agradecer à perseverança do Pedro Gonçalves da Dr. Ding, porque abraçou a minha ideia e tem “botado” as minhas pranchas aí no mercado português, um mercado que é um termómetro Europeu muito forte, a costa portuguesa é muito procurada pelo mundo inteiro. Ele tem feito um trabalho excelente, o Pedro é um grande amigo, desde a época ainda da SPO, uma pessoa super positiva, dinâmica, “o bicho é fera”. Agora, é uma batalha, dia e noite, não se pode descansar nem um minuto, a minha aceitação depende muito da gente tentar inventar alguma maneira de conseguir aparecer no mercado. Brincando com a situação, se o surfista que é um bom surfista entra numa surfshop com Channel Islands, JSs, DHDs e Firewires, ele vai encher os olhos. E vai estar lá Cabianca até por um preço mais acessível e vai ser talvez a última prancha que ele olha. Mas está lá, e tem saído, e eu tenho muito a agradecer ao Pedro isso. Estando aqui na Europa, em Espanha, a gente sofre muito com o preço. Para ser competitivo a nível mundial de trabalho, ou seja, para você fazer uma exportação, já é mais complicado com o preço que pratica. Todo o nosso material tem que atravessar o oceano, o bloco, fibra, resina. Quando você vê o preço da prancha não é talvez competitivo, mas a gente tem aberto novos mercados, Coreia, Israel, Austrália e EUA, mas com vendas muito “tímidas” exportando daqui. Na Austrália hoje eu tenho que agradecer muito ao pessoal da Surfboards Empire, lá da Gold Coast. O Dave Tarentino faz um trabalho muito bom também, mas devagar porque eu não estou lá. Ele faz a minha marca lá na Austrália e vende mas foi muito ruim com a pandemia, porque eu não me pude deslocar à Austrália. Estamos a começar, é um embrião que está a começar a crescer, estamos indo para a frente.

 

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