Este inverno encontrámo-nos algumas vezes na água e foi numa viagem que fizemos ao Alentejo em busca de um swell, que aproveitei para tentar perceber quem era este António Silva mais maduro. Fiquei alguns meses a reflectir as conversas que tivemos e só mais tarde percebi que estava na altura de um diálogo mais profundo. Esta entrevista é o resultado disso.
Convido-vos a viajar pela história deste big rider português que recebeu recentemente o convite para ingressar no Big Wave Tour. Vamos sentir velocidade e intensidade. Agarrem-se bem!
António, quando é que percebeste que o surf faria parte da tua vida?
Eu acho que foi gradual. Dás um bom tubo, um bom aéreo e começas a ficar viciado. Comecei a surfar na Praia Grande sozinho. Conheci a malta de lá, como o Gonçalo Faria que foi uma referência importante, uma pessoa que me ajudou muito. Fizemos 3 temporadas Havaianas e ele marcou-me com a sua atitude nas ondas grandes.
Estás a dar um exemplo de um dos maiores bodyboarders portugueses. Aprecio essa tua humildade de falares de alguém que não é surfista mas sim um verdadeiro waterman.
Aqui em Portugal os bodyboarders, na generalidade, sempre tiveram muito mais atitude que os surfistas. Sempre procuraram ondas de consequência. E os surfistas profissionais do passado sempre tiveram um surf muito banal, nada de extraordinário. Só há pouco tempo é que começaram a aparecer surfistas portugueses com nível internacional. Tivemos o Dapin que foi o único que conseguiu chegar lá. O Gonçalo Faria apesar de não ser surfista era homem do mar e passou-me aquela atitude go for it. Havia também o Macedo mas estava na Austrália na altura, era uma referência mas vivia longe, nunca dava para estar muito tempo com ele.
Achas que a Praia Grande transforma meninos em homens? Falaste no Macedo, também tens o André Pedroso e outros…
O Nicolau, o João Pereira Caldas, grande big rider (que ganhou um dos históricos campeonatos na Ilha da Madeira, com ondas de respeito). O João vai caçar com mares enormes, ao lado dele a maioria do pessoal da caça são meninos de coro.
Talvez hoje em dia a Praia Grande já não transforme tanto os surfistas. Sabes porquê? Na altura não tínhamos as webcams, os windgurus. Chegavas lá e entravas ou então tinhas que ir para Carcavelos. Ligavas para o serviço de informação de ondas por telefone (risos) … dava cada martelada aos meus pais… (era muito caro) eu acho que enriqueci esses gajos só com o dinheiro que gastei. Uma das outras opções era ir aos Coxos. Pegava na motinha e lá ia eu com nortadas e tudo, surfava aquele inside.
O surf é assunto para falares à mesa com um bom vinho?
Então não é? Mas prefiro falar com quem percebe de surf, que fale a mesma linguagem que eu. Por vezes não gosto de falar com pessoas que não sabem o que é o surf, especialmente de ondas grandes. Gosto de falar com homens do mar. Há muita gente a fazer surf mas há poucos surfistas. Há pouca cultura de surf.
Se não fosses surfista qual era o teu caminho? Paraquedista, alpinista?
MotoGP.
Também ias partir uns ossos? (O António já teve vários acidentes…) Precisas de adrenalina, certo?
Sim, preciso dessas descargas de adrenalina. Eu acho que todos precisamos, a diferentes níveis, mas todos precisamos.
E as ondas grandes como é que surgiram? Fizeste competição, aquele percurso normal. Quando é que se deu o click?
Também foi gradual. O Havai deu-me uma grande experiência. Hoje em dia já podes adquirir experiência em ondas grandes sem ires lá, mas na altura foi uma aprendizagem. No Havai qualquer um surfa 4 ou 5 metros. Está um surfista mais velho, está uma mulher, estão famílias inteiras a curtir e a dropar as bombas. É uma cena natural. Mas o facto de ser água quente e ires de calções também ajuda.
Aqui ao lado os bascos têm uma comunidade muito forte que surfa ondas grandes na remada. Porque é que achas que em Portugal só agora é que começaram a surgir alguns grupos de big riders? Antes eram apenas casos isolados.
Eu acho que os surfistas que na altura eram pagos para puxar os limites em Portugal não puxaram nada. Acomodaram-se por serem os maiores da zona e isso refletiu-se no panorama das ondas grandes.
Ao nível mundial o tow in elevou o surf de ondas grandes a um outro patamar através das surfadas na famosa onda de Jaws (Peahi, no north shore da ilha de Maui), com surfistas como o Laird Hamilton, Darrick Doerner ou o David Kalama. Agora a geração mais nova como o Billy Kemper ou o Albee Layer e também o Shane Dorian deram início a uma nova era de surf de ondas grandes na remada, com altíssimo nível. Como vês esses feitos?
Big riders há muitos, mas bons surfistas big riders há poucos. Daqueles que destroem uma onda de 1 metro como de 2 ou 10 metros. O Kay Lenny por exemplo. O Shane Dorian que provou que o facto de ter tantos skills como surfista só o favoreceu nas ondas grandes. Meteu ali todo o seu knowledge naqueles drops e naqueles tubos. É evidente que podes mandar-te a umas grandes bombas sem seres um excelente surfista, mas para mudares a história, para mudares o desporto como ele mudou, só pode ser alguém que tem que estar ao nível dos melhores. E ele esteve na primeira linha, ao nível de um Kelly quando correu o Circuito Mundial. Até podes fazer uma onda grande parecida com as que ele faz, mas a probabilidade é muito pequena.
Há determinado tipo de slabs (ondas muito rasas em fundo de rocha) que não são para o surf na remada. Achas que essa é umas razões para o tow in não acabar?
Eu acho que não. Acho que o Tow in vai acabar. Um dia vai ser possível remar para essas ondas. Mas requer tempo e material. Evolução.
És crítico em relação a quem avança para o Tow in sem experiência na remada?
Não. Cada um quer enfrentar os seus medos, seja de tow in, de bodyboard, de SUP, seja como for. A mota e o cabo ajudaram-me imenso a estar em mares em que não era possível estares na remada e aprimorou os meus skills. Estás a surfar a onda como uma prancha diferente e é outro jogo, mas estás lá. Estás ali no meio. Agora é óbvio que o futuro não passa pelo tow in.
“Quando a cabeça não tem juízo… o corpo é que paga” António Variações
(Risos) O gajo tinha razão. É sábio. Tinha mesmo razão… Aprendi muito nos últimos anos. Tu quereres ser sempre o mais maluco e tal… Não ganhas muito com isso. Tens que jogar bué com a cabeça. Um gajo magoa-se à séria e… o corpo é que paga. E também gastas dinheiro.
Já pagaste mais em slabs ou ondas de hold down (mais massudas que requerem muito treino de apneia)?
É pá eu já paguei todo o tipo de faturas. Tenho a lista toda (risos). E muito caras para o número de ondas que surfei. Há muitos surfistas que ainda não pagaram e estão sempre a falar que estão à espera do swell. É uma boa atitude, mas… respeito. Muito respeito. O mar brinca contigo. Lembro-me no início da malta falar da Nazaré, que aquilo era uma onda mole. Ela provou-me que não. Levei um tareão que de mole não teve nada.
Tiveste medo no campeonato da Nazaré?
Medo tenho sempre. Eu sei o que é que o mar pode fazer… Passei as piores situações e por isso tenho sempre medo. O mar é quem manda! Faz de ti o que ele quiser. Já passei as passas do Algarve e há que saber ser humilde. O mar é muito forte, ele tem muitas toneladas, ele rebenta-te todos os ossinhos do corpo, mesmo que trabalhes muito no ginásio. (7 meses antes do convite para o Nazaré Challenge o António teve um acidente grave a surfar. Recuperou bem da lesão na coluna graças ao excelente trabalho do médico Nuno Lança que o operou. Seguiu-se um longo caminho de recuperação com o fisioterapeuta Nuno Morais e o treinador de piscina João Pedro Parisot).
O Kohl Christensen disse uma vez que não há nada comparável a remares com os teus braços e o coração sem saber se vais conseguir dropar a onda…
Sim, não há sensação igual a essa. É a magia das ondas grandes. Não vai acabar.
E a tua preparação física? Há pouco tempo vi umas fotografias tuas na caça submarina. É para treinares ou é só para ires buscar o almoço?
Gosto de caçar. E depois trato o peixe e cozinho. Há pouco tempo disseram-me para cozinhar sem tirar as escamas. Preparado ao sal (para ser preparado ao sal o peixe não pode ser escamado, uma vez que são as escamas que previnem que o sal entre no peixe e este fique salgado). Mas sim, é sempre um treino, ainda ontem fiquei preso a uma linha e tive que a cortar. Debaixo de água não é o teu mundo, os peixes brincam contigo, é como as ondas. Também tenho os treinos na piscina. São treinos muito bons, já me salvaram a vida umas vezes.
Tens um bom patrocínio de pranchas (ORG) mas falta-te um patrocinador principal. O surf de ondas grandes cria tanto impacto, como é que é possível que os big wave riders não possam viver confortavelmente do surf?
A Europa sempre foi um bom mercado para ter patrocínios. Por isso há coisas que não percebo. Toda a gente adora ver ondas grandes mas os apoios são muito poucos. Há surfistas que arriscam tudo, aleijam-se, representam os seus países e a troco de nada. Quando não há campeonatos, não há prize money, e eles vão surfar ondas grandes na mesma. Choca-me ver alguns surfistas patrocinados por marcas internacionais, que já não surfam nada e que ainda ganham balúrdios.
Parabéns pelo convite para o Big Wave Tour. Quero-te ver a surfar Jaws. Estás ansioso? Já surfaste a onda?
Nunca estive lá, mas quero muito surfar a onda. Quero ir com tempo. Quero namorar a onda, é muito importante. Tens que a conhecer bem, é exigente. Precisas de estar ali muitas horas, nos dias bons e nos dias maus. É como as mulheres (risos)
E que pranchas vais levar contigo na bagagem?
Tenho uma 11’8, uma 10’6 e uma 9’0. Todas da ORG.
Eddie Aikau. Já alguma vez sonhaste em estar na lista?
Claro que sim. Quem é que não sonha com isso?
Eddie Would Go é uma frase que é usada para incentivar alguém a ir numa onda ou a ultrapassar os seus medos. António Would Go! Gostavas de um dia seres lembrado assim?
(Risos) Lembrado como aquele que foi parar à direita na pedra do canhão da Nazaré. Acho que fui dos que passou mais tempo a nadar ali. Não me importo de como vou ser lembrado. Sabes que o meu ego já morreu há muito tempo.
Eu acho que és um guerreiro!
Eu sou apaixonado por aquilo que faço. Não sou guerreiro…
“Viajar! Perder países!
Ser outro constantemente,
Por a alma não ter raízes
De viver de ver somente!”
Fernando Pessoa
O que é que aprendeste com as viagens?
Tanto…Se não tivesse viajado eu era outra pessoa. O surf é o desporto que eu faço e isso leva-me a viajar para destinos de ondas, mas o que eu gosto acima de tudo é interagir com os habitantes desses países, perceber a cultura local. Tenho amigos meus que vão para a Indonésia e ficam no resort ou no charter boat e dizem que foram à Indonésia. E de facto foram. Mas é diferente quando ficas em casa dos locais e vives a vida deles. Eu falo o bahasa. Ao fim de tantos anos… precisava de comer e era tudo por gestos que acabei por falar a língua deles. Gosto de interagir, de ver os costumes deles, de fazer amizades para a vida. Mas também já estive em sítios onde odiavam os portugueses por causa de Timor.
De ano para ano vejo que as pessoas estão diferentes, a internet por exemplo veio mudar muito. Há mais cobiça e isso muda as pessoas. Eu acho que lá as pessoas não são assim tão pobres porque não passam fome. Têm peixe, têm fruta. Pobre é alguém sem dinheiro numa cidade. Isso é que é um pobre.
Para além do surf quem é o António Silva?
Sou um bandido (risos). Sou amigo do meu amigo. Quem gosta gosta, quem não gosta, não gosta. Não faço nada para agradar aos outros. Tens que ser como és, tens que ser correcto, amigo da tua família, dos teus. E praticares o bem. Tudo que fizeres de mal vais pagar caro.
No futuro quero continuar a surfar, ter saúde e estar rodeado das pessoas que amo.
Créditos (por ordem):
Photo 1 – Arquivo pessoal
Photo 2 – Bruno Smith
Photo 3 – Arquivo pessoal
Photo 4 – André Carvalho
Photo 5 – Pedro Mestre / WSL
Para ler mais textos de João “Flecha” Menses vista o seu blog “Caderneta de Mar”.
Sobre o Autor:
João “Flecha” Meneses| Com quase três décadas de surf nos pés, “Flecha” enquadra dois adjectivos de respeito no surf, “underground” e “Soul” surfer. Originalmente local das ondas da Caparica, João tornou-se residente da Ericeira há mais de uma década e é um daqueles surfistas que não aceita insultos do “Sr. Medo”. Nos seus tempos livres é escritor de mão cheia e esta é mais uma excelente colaboração com a ONFIRE.
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