Esta foto esteve escondida do mundo até hoje. O objetivo era guardá-la bem guardada até ao momento da sua grandiosa publicação em alguma revista de surf num futuro próximo, já que todos concordávamos em que seria um desperdício dar-lhe aquelas curtas 6 horas de fama que todas as coisas têm nas redes sociais, antes de desaparecerem para sempre num scroll down.
Revistas de surf eram uma espécie de lugar mágico. Tinham o poder de fazer com que qualquer surfista se sentisse como um miúdo a ver o seu desenho animado preferido sempre que passávamos os olhos pelas colunas cheias de erros ortográficos que se escreviam sobre uma viagem qualquer à Indonésia.
Lá as líamos, mas era só porque sim. Na verdade, o que interessava eram as fotos. Faziam-nos sentir um pouquinho mais perto daqueles lugares que não tínhamos dinheiro para visitar. Mas, acima de tudo, elas representavam a oportunidade de tocar com os dedos naqueles momentos de surf, sempre que quiséssemos. Estavam guardados para sempre. Não havia casa de surfista que não albergasse debaixo da cama ou algures na casa de banho (e, não havendo smartphones na altura…) um molho de revistas com ondas na capa. Era como se pudéssemos estar mais perto de tudo, no centro de tudo. No dia seguinte, a edição deste mês seria tópico de conversa no bar da praia ou na escola de surf – Toda a gente sabia quem tinha apanhado altos tubos nos Coxos ontem e toda a gente sabia quem tinha ganho os sub 12 na semana passada. Toda a gente sabia quem era toda a gente. E todos estávamos “dentro da cena”. Não havia o orgulho de hoje em dizer: “não tenho andado muito dentro do mundo do surf”. Ser surfista não era fazer surf. Era uma espécie de estado metafísico – fazia-se parte de uma ideia, de uma gente. De uma comunidade que desapareceu sem deixar rastro – morreu para sempre quando deixámos de falar sobre a última capa. Quando as últimas marcas partiram do surf em busca de bloggers em bikini no Instagram.
O dia chegou em que também eu comecei a fazer parte de páginas nas revistas. A ansiedade ao procurar o meu shot na última edição foi a mesma na primeira vez que tive uma micro foto num cantinho de uma SurfPortugal, aos 11, e na última, há dois anos, na derradeira edição da ONFIRE.
Para um fanático de surf, as revistas eram uma forma de estar perto. Para um surfista profissional (muito mal pago, mas um profissional) elas eram uma razão de ser. Era na esperança de conseguir “aquela” fotografia que nos levantávamos a horas estúpidas, num frio de rachar e à chuva, para surfar aquele wedge manhoso que tinha a cidade como pano de fundo. Era o objetivo de todos – aquela página, aquela dupla… aquela capa.
Eu nunca fiz a capa. Duplas com fartura. Entrevistas de 10 páginas, grandes artigos… Num ano, apareci em todas as edições da ONFIRE. Mas nunca a capa.
No início deste Verão, algo aconteceu: Era um daqueles fins de dia típicos de uma má temporada como a que passou: nortada e um frio de rachar, na Ericeira. Fui tentar me esconder do vento para a Crazy Left. Aquele “metrão” e quase ninguém na água. Por algum motivo que me escapa, estava um fotógrafo na água, o Tim, um alemão que trocou a fotografia de marcas e a cidade por uma caravana e a vida de nómada. Nessa noite, recebo uma mensagem com uma fotografia. Mostrei-a ao Director da ONFIRE e a resposta automática foi ”Yup, temos capa”. Mas já não há capas.
Onde é que eu quero chegar com tudo isto? Bem, a lado nenhum, na verdade. Contos de fadas existem, mas só quando estamos sob o efeito de substâncias alucinogénias ou num barco na Indo. O papel está a morrer (e tu também!) e ninguém o pode salvar. É uma coisa boa – sites até são porreiros, fazer o belo do scroll down pelo Instagram da Surfing Mag é giro e salvam-se árvores e cenas.
Mas às vezes é bom deixar a mente voltar a esse tempo em que vivíamos o surf fervorosamente. Esse lugar do passado onde o coração batia mais depressa em função de uma maré e não pensávamos duas vezes sobre se dormiríamos cedo ou não porque Carca ia estar épico amanhã. Uma era onde era “cool” ser-se completamente doido por conversas de ondas e manobras, mesmo que não se fosse surfista.
E, para mim, sempre haverá aquele amor platónico – aquela capa que nunca fiz, aquele sonho que morreu quando uma parte do surf morreu.
JK
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Sobre o Autor:
João Kopke /orgulhoso detentor de um carro moribundo e cheio de areia. Surfista sim, mas cantor lírico e estudante de ciência política e relações internacionais. Estilo – Bem enquadrado socialmente mas que denote algum sentido de rock&roll: t-shirt slim fit – furada no ombro. Boas notas na faculdade – aparece de chinelos. Aulas de contrabaixo – sempre descalço.
22 anos. Desde os 8 que o seu braço está formatado para carregar pranchas de surf. Desde os 10, os seus ouvidos treinados para encontrar a sensível. Desde sempre, os seus olhos muito abertos para ver todas as coisas.
Uma serrada convicção na ideia de que possuir serradas convicções e tecer juízos de valor é para lá do ponto – belo é escrever sobre a decadência do mundo sem lhe apontar o dedo.
A arte – vídeo, fotografia, música e escrita – é para ele a caneta com que se escrevem as histórias dos caminhos por onde nos leva uma prancha de surf.
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